17 janeiro 2010

Saramago by me

 O dia em que eu entrei na história de Saramago, para fazer a minha.


Certa noite, supunha ser noite pois estavam todos dormindo e o calor característico do sol já tinha se recolhido, o velho da venda preta, inquieto em seu sono, levantou-se e foi até a porta de entrada da casa. Como chegou lá é um mistério, desses que não vale a pena se debater muito. O importante é que conseguiu, sem muitos barulhos, abrir a fechadura e respirar o ar que almejava, não pelo calor que, como já mencionado, tinha dado trégua, mas pelos próprios demônios internos que o estavam a lembrar constantemente o quanto é quente o inferno. Ao alcançar o patamar a paz almejada foi interrompida por um barulho de passos curtos, de quem ia pelo caminho sem intenção de se notar. Quem falas, perguntou, Quem fala na escuridão, uma voz de mulher questionou, a voz estava próxima, a menos de dez passos, pelo o que os sentidos aguçados de audição do velho da venda preta lhe diziam. Apenas um velho cego, e tu, se meus ouvidos não me enganam disse sobre a escuridão, como sabes tu disso, Estamos todos na escuridão, não o é difícil saber, Diria que estamos em um mar de luz, Para mim não existe distinção, toda forma de cegueira é a ausência de visão, e escuridão, portanto, Uma forma distinta de pensar, mas vejo sentido, É porque o há, algumas coisas acontecem dessa forma, quando não se aguarda e não se deseja., veja o caso deste velho cego que desejava um descanso de seus diabos internos que o vinham visitar no sono e depara-se com uma moça que lhe faz pensar ainda mais nas coisas da vida e da morte. Certo era que se tratava de uma jovem adulta. Tinha os cabelos louros e armados, certamente em outras época eram apenas ondulosos e bonitos, hoje tinham o aspecto de vassoura de palha. As razões disso não precisam ser ditas. Os olhos eram de um castanho amendoado, davam a impressão de que podiam falar por si só, em um mundo que os olhos não valem mais uma moeda. Sua altura era média e trazia consigo trapos que já não podiam se distinguir se era roupas de marca ou de brechó, não se podia dizer nem se roupas eram. Em tempos que olhos tinha para os estudos frequentava a faculdade, na intenção de um dia formar-se e ser mais uma na massa de pessoas que desejam o mesmo, seguem o mesmo caminho e encontram-se no funil da vida, no qual passará apenas os mais finos. Se ela um dia passaria é pergunta que não encontra contexto. Pela voz que tinha, firme de cada palavra que expelia, e pela coerência destas, o velho da venda preta pos-se a imaginar, quase que inconscientemente, os traços da personalidade e da face da jovem adulta. Talvez fosse uma jovem que muito pensa sobre o mundo. Eu vejo, Disto minha razão já me alertou, mas meu coração não quis confirmar a informação, Creio ser difícil acreditar que alguém tenha olhos em mundo de cegos, Verdade é que não, poderia o velho da venda preta contar à jovem adulta que andava com um grupo, que julgara único até aquele momento, cujos olhos vinham verdadeiramente de uma mulher que enxergava tão perfeitamente quanto esta que estava a lhe falar agora. Não o sabe o velho porque motivo o comentário não foi efetivado, talvez seu sexto sentido o tenha dado o alerta, talvez não o tenha parecido apropriado. Foi então que apercebeu-se um fato tanto quanto estranho, que o susto inicial não o tinha permitido notar. A jovem adulta não parecia trazer consigo companheiros de jornada. Não vem contigo um bando, perguntou, Não trago comigo pessoas, se isso quis dizer, Desculpe-me o termo, nesse mundo de hoje não sei se cabe mais distinguir os ajuntamentos de pessoas e animais, Pessoas sempre serão pessoas e animais, animais, que situação no mundo mudaria tal fato consumado desde a geração, Tens razão, esqueça o que disse, apenas, se me permite saber, explique porque está a andar só, se vê, tem olhos para achar os seus, Sim, os tenho, mas nesse caso de nada serviram. Não entendo, pensei ser verdadeiro o dito antigo que dizia ser rei quem, na terra dos cegos olhos tinha, é o que estamos a viver, Meus pais cegaram quando eu estava na aula, quando cheguei já os tinham levado à quarentena, para lá nunca pude ir buscá-los, Agora compreendo a peça que a vida lhe pregou, Sim, grande ironia, fato é que desde então os olhos têm me servido apenas para registrar a desgraça que se encontra o mundo, Disse que estava na aula, já tens idade para faculdade, Sim, lá estava. E que fazias lá, Estudava como persuadir as pessoas a comprar produtos, faculdade que não me cabe mais, hoje todos vão à caça de comida e outros artigos, sem que precise alguém mandá-los, também escrevia, não é preciso dizer que uma coisa é agora mais inútil que a outra, ninguém escreve o que não consegue pensar e nesse mundo de cegos ninguém pensa, não o era, pensou o velho, lembrou-se do escritor que havia conhecido e que agora residia na casa do primeiro cego, mas preferiu não lembrar a jovem que de tinha menos capacidades de adaptação que aquele, em vez disso fez outra pergunta que estava a passear por sua mente, Seu trabalho era de iludir as pessoas, Não, apenas de mostrar o que elas não viam, razão porque não sirvo mais para coisa alguma, As pessoas não precisam de olhos para terem outra visão do mundo, Verdade, mas eles são a janela da alma e, estando fechados, não deixam entrar o conhecimento, Não concordo, Se fosse em outra época o faria concordar, mas essa já não é minha função no mundo. Não quis perguntar qual seria, então, a função daquela jovem adulta no mundo, sabia que a resposta era a mesma que a sua e de todos que conhecia, sua função era a mais nobre do ser humano, a de sobreviver.
O silêncio que se seguiu a esta conversa tanto quanto perturbadora fez soar um barulho de tambores e baterias, tamanho era sua magnitude. O som vinha dos pensamentos do velho e da jovem, ambos trabalhando de forma tão dinâmica que tinham medo de que a música dentro de si pudesse estar a perturbar os vizinhos. Na noite anterior à cegueira ir de encontro a meus pais eu tive um sonho, disse a jovem adulta. E o disse, assim, repentinamente, como se este pensamento tivera acabado de lhe ocorrer, interrompendo a música de seu interior, assim como a de seu companheiro de conversa. Faz tempo que não tenho sonhos, como se meu cérebro necessitasse estar bem alimentado das qualidades básicas de sobrevivência para depois pensar em trabalhar, A qualidade a que se refere já tens, é o ar que ainda sai por seus pulmões, esse eu tenho ainda de sobra, por isso sonho todas as noites, E por que motivo lembra deste sonho da noite anterior à cegueira de seus pais, Porque sonhei que o mundo estava cego, Teve uma previsão, Não, o mundo não tinha relógios, apenas dei-me conta de que esta é, também, uma espécie de cegueira. Deseja dividir seu sonho com um velho cego, talvez isto ajude a livrar seus pensamentos dele, Não contei este a ninguém, Eu gostaria de ser o primeiro. Ao serem ditas estas últimas palavras, a jovem adulta, como quem esperasse por elas, pegou-lhe as mãos e o conduziu ao primeiro degrau, lá estariam confortáveis e longe de ouvidos atentos. Ela poderia então usar todo o ar de seus pulmões para lhe contar o que há tanto guardava para si. Como vou às aulas pela manhã e logo após trabalho, fico cansada e, por este motivo, preciso de um despertador que me acorde, falo aqui no presente porque a memória me vem fresca à mente, pois então, o despertador é objeto imprescindível no meu dia, tanto é que acordei, no sonho, quando já estava o sol alto, acertando seus raios direto nos meus olhos, causando, ironicamente, uma cegueira branca instantânea, estranhei, pois costumo acordar quando ainda está nascendo o dia, ou, melhor dizendo, o despertador costuma acordar-me, ao olhar para a cômoda ao lado percebi, então, que o relógio estava parado nas três horas, o pânico não me atingiu de imediato, podia ser a eletricidade, desses panes que se dão pela madrugada, estranhei que o relógio não estivesse a piscar, como acontece quando essas situações sucedem, levantei e meu primeiro impulso foi olhar para o telefone de bolso, imagine o senhor o meu espanto ao notar que o relógio deste também não funcionava, o relógio da cozinha, pendurado na parede também não funcionava, o pequeno relógio no banheiro também estava parado nas três horas, os relógios dos aparelhos telefônicos dos meus pais não funcionavam, o relógio dos dispositivos audiovisuais não funcionavam, o relógio das ruas não funcionavam, assim como o relógio de pulso, o relógio de bolso, o relógio dos computadores, o relógio dos bipes, o relógio dos transportes públicos, o relógio dos carros, os relógios dos aeroportos e das rodoviárias, o relógios das escolas, o relógio das igrejas, assim como está toda a gente a andar cega, assim estavam paralisados todos os relógios, não havia como saber qual hora do dia era, não sabia se estava muito atrasada para o serviço, apenas sentia, pelo calor do sol, que o dia estava a pino, era provável ser hora do almoço e estava eu a acordar, que pensaria meus superiores disso, estava eu pensando em coisas miúdas e o mundo estava a desmoronar em frente de meus olhos, ao olhar pela janela via pessoas andando a esmo pelas ruas, umas apressadas, outras lentas como se já estivessem a aceitar que a vida teria de ser assim vivida, sem relógios, na confusão dos que não sabem vivem quando lhes falta a tecnologia, pense o senhor em um mundo sem horas,  como saberiam os motoristas dos coletivos a que horas deveriam estar nos pontos a espera dos passageiros apressados para seus serviços, como saberiam os passageiros o horário certo de estar no escritório, como saberiam os chefes dizer se alguém estava atrasado, quando ocorreria a primeira transmissão de notícias do dia, os restaurantes, a que horas aprontariam a comida, as creches ficariam prontas para receber os filhos daqueles que vão passar o dia fora, sem falar de questões a longo prazo, como abastecimentos de todo tipo e os horários da medicina, para atender aos aflitos, ou ficariam todos acordados ou, ao dormir, se perderia os horários certos e uns teriam que esperar pelos relógios biológicos de outros, que, sabe-se, são todos diferentes, até que as pessoas voltassem a entender os relógios de sol dos antigos muitas coisas ruins teriam sucedido, acordei, Assim, simplesmente, Sim, assim, em meio a todos esses pensamentos que me ocorriam, não sei bem qual deles pensei no sonho qual pensei aqui, verdade é que acordei, assim, e lá estava meu relógio a funcionar, como sempre estivera, não poderia eu imaginar que ao fim do dia de nada me adiantaria o funcionamento correto do relógio e que estaria eu a desejar que este pesadelo fosse realidade em lugar da realidade que vivia. O relato da jovem adulta deixara claro ao velho da venda preta o quanto o ser humano é frágil. Ainda pior, o quanto o ser humano inventado pela vida moderna é fraco e dependente de tecnologias, de tudo quanto não é dado pela natureza. Os antigos viviam bem sem relógios e graças à inteligência que tinham a humanidade foi-se evoluindo até que chegasse, então, ao relógio como o conhecemos hoje, isso significa que nossos antepassados viviam tão bem com seus relógios biológicos, que lhes sobrava tempo para pensar em invenções modernas, como os relógios que temos, estes que, em verdade, para nada serviam, se existia o sol a lua e o intestino. Acordou também o velho da venda preta, tão repentinamente quanto o tinha feito a jovem adulta de seus sonhos, afinal, disso não passara, Que tens tu, perguntou a rapariga dos óculos escuros, com quem agora dividia a sala da mulher do médico, apenas um pesadelo ou sonho, não tenho certeza, Estas bem, Estou, apenas dei-me conta do quão frágil são as pessoas, estão sujeitas a todos os tipos de cegueira, não devemos nós condenarmos esta pobre luz branca que nos assola, se não fosse ela estaríamos cegos da mesma forma, pois mais fácil é ser cego que enxergar toda a realidade do mundo, Estás a delirar de sono, durmas, Sim, dormirei, virou o velho da venda preta as costas à rapariga dos óculos escuros, de forma a ficar pouco mais sozinho e fechou os olhos que já nada viam. 

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